Indiscutivelmente, São Paulo não se caracteriza apenas por ser um grande e caótico centro urbano, mas também, por sua pluralidade cultural, conseguindo agrupar uma série de tribos urbanas, cada uma com a sua especificidade, seja através dos comportamentos urbanos ou das afinidades inter-pessoais ou das estéticas “street’s” ou das atividades profissionais ou das ideologias políticas ou das crenças religiosas ou das múltiplas etnias (cor, raça, naturalidade, nacionalidade) ou da diversidade sexual. Essa grande tribo urbana chamada São Paulo, também agrega em si, tribos indígenas.
Entre algumas visitas marcadas e desmarcadas, aproveitando o último feriado prolongado do ano, Corpus Christus, eu e uma amiga fomos visitar a tribo “Tekoa Pyau”, uma das aldeias dos Guaranis, situadas no Jaraguá. Como não poderia ser diferente, eu fui munido com as minhas parafernálias para conhecer e registrar essa visita etnográfica: “Pus o meu colar de índio, afinal, todo dia é dia de índio, além de trazer comigo a minha curiosidade e a observação crítica, sim, apesar de ser uma visita informal e de lazer, eu ainda sou um cientista social, e a minha máquina digital”.
Quando falamos ou pensamos em tribos indígenas, ainda paira no nosso inconsciente e no imaginário coletivo, a idéia do índio colonizado, repleta de culpas, omissões e pesares que nós carregamos e amargamos pela ação dos nossos antepassados colonizadores, responsáveis pela dizimação da nação indígena brasileira – a nossa primeira matriz cultural, os primeiros habitantes das terras que, depois, as conheceríamos como Brasil. E ainda hoje, não podemos negar, que esse sentimento de pena ainda continua vivo em nós, gerando uma série de rótulos depreciativos e preconceitos que ainda os categorizam como "brasileiros" de quinta categoria, que precisam de cuidados (que configura em muitos casos como puro e mero descaso) e intervenções políticas e ações assistencialistas (medíocres).
- "Putz, os séculos passaram, o Brasil se urbanizou e se desenvolveu em alguns setores (infotecnologia, pesquisa científica e universitária), buscando sobreviver ao seu próprio caos social, mas, ainda continua preterindo a cultura indígena como se fosse algo submenor, sem importância alguma. Antes, se as populações indígenas foram dizimadas de corpo e alma, pagando com a própria vida, hoje, elas são dizimadas simbolicamente, à medida que a demarcação das terras indígenas não são respeitadas e continuam espoliadas mais uma vez, agora pela ganância dos grandes fazendeiros e madeireiros que se apropriam dessas terras, sem cerimônia alguma, e também a restrição social que as nações indígenas são subjugadas, tendo que se adaptar ao ritmo e a dinâmica urbana, muitas vezes, como indigentes, mendigos e favelados, sem respeito algum por sua cidadania."
Além, da mesma e tradicional fantasia de índio que eu usava para pular carnaval, nos áureos carnavais do Clube Líbano em Fortaleza, na minha mais tenra infância, e dos livros de História do Brasil e de visita aos museus históricos, o meu primeiro contato com os povos indígenas, efetivamente, aconteceu por volta de uma década atrás, quando eu ainda trilhava a graduação universitária na UNIFOR, visitando os "Tapebas" - uma das tribos indígenas existentes na Caucácia, Município Cearense. E agora, com os Guaranis do Jaraguá.
Depois de uma década sem contato com os índios, a impressão que me deu, que os povos indígenas ainda continuam tendo o mesmo tratamento pelos "não-índios", aliás o mesmo não-tratamento, o descaso e o desrespeito total. Continuam subjugados a miséria social e a ausência de oportunidades para continuar preservando a sua cultura com o mínimo de dignidade possível. Nem me refiro ao termo "aculturação", porque uma vez invadidos, como a cultura indígena foi invadida, desde a colonização, as etnias indígenas que se adaptaram ao processo civilizatório e assumiram a condição urbana, ao exemplo dos Guaranis em São Paulo, a sua cultura também precisou acompanhar a modernização, até como medida de sobrevivência no meio urbano em que estão inseridos, mesmo tendo que se relacionar com todo o desdenho e a ignorância da comunidade não-indígena que os subestimam, embora a sua essência indígena (o apreço pelos seus antepassados e suas raízes culturais, a preservação do idioma guarani, sua crença miscigenada e os seus ritos) permaneça existindo e resistindo bravamente.
Falando especificamente da tribo "Tekoa Pyau", o que me chamou atenção foi o grau de urbanização que eles absorveram. Quando se fala em tribo indígena, vem logo à mente a estética indianista, com ocas, trajes mais característicos da cultura indígena e outros incrementos naturais (palhas, redes, instrumentos de caça e pesca, sementes, cerâmicas de barro) que nos reportam a "vida de índio" como nas tribos do Xingu e da Amazônia. Mas, não podemos esquecer que se tratam de tribos indígenas urbanas. E por se tratar de uma tribo urbana, esteticamente, ela assumiu a pior cara da urbanização, mediada pela miséria e a falta de estrutura física e sanitária, um misto de acampamento "sem terra" e favela, vários barracos amontoados ao pé do Pico do Jaraguá e o seu campo de futebol aterrado (lazer preferencial dos índios), confrontando-se com a Grande Oca Ceci - Centro de Educação e Cultura Indígena, coordenado pela prefeitura local juntamente com a participação dos membros da tribo, uma vez, que boa parte deles trabalham lá.
Além dos fenótipos desses indivíduos, todos os traços biológicos que não negam a sua etnia (pele amorenada, corpo físico esbelto, olhos "puxados", cabelos negros e tão lisos que uma chapinha de cabelo jamais se aproximará dessa textura capilar, o sorriso e a timidez peculiares) e o uso informal do português pelos adultos e pelas crianças, que alternam entre o português e o guarani, a feitura dos artesanatos (colares, brincos e acessórios de sementes, cestos de palha e esculturas talhadas em madeira) e a decoração do Ceci, me fizeram lembrar que eu estava num tribo indígena. Talvez, eu estivesse esperando encontrar mais símbolos indígenas que pudesse quebrar a realidade urbana em que eles vivem, porém, eu acredito, que a essência indígena possa ser mais perceptível em dias de festas e comemorações, em dias especiais quando o "ser índio" esteja mais aflorado nos seus rituais.
- "Sinto que, hoje, ao meio da urbanização, o "ser índio" se urbanizou, não apenas tendo acesso aos aparelhos domésticos e de informática, (Sim, porque os Guaranis também são seres on-line, tendo acesso aos telefones fixos e celulares e computadores, como também, site na Internet para noticiar as suas atividades, ao exemplo das feiras de artesanato que ocorrem nos finais de semana), mas, passando a ter um modo de viver urbano em muitos sentidos, mesmo que encontre resistência social, porque a sua cidadania não é respeitada como se deve, afinal, também é um brasileiro e pelo fato de ser índio, não precisa ser tratado como cidadão menor, e resistência humana, vítima do preconceito e da ignorância dos não-índios que os minimizam. Particularmente, o que ainda falta para o "ser índio urbano", além das melhores condições de vida, indiscutivelmente, é preciso o resgate da auto-estima do índio, fazendo crer que ele é um cidadão brasileiro como qualquer outro, que pode buscar o seu desenvolvimento humano, profissional e social, sem esperar pelo assistencialismo político, o apoio e compadecimento social e a ação dos seus líderes comunitários."
Mais do que tribos indígenas urbanas, mediada por toda a simbologia tribal, eu as considero as tribos urbanas do Jaraguá como comunidades urbanas indígenas, influenciadas pela problemática urbana e tendo a missão de vencer o desafio de preservar a sua herança étnica, suas crenças e seus ritos, mesmo experimentando um modo de viver urbano. Isso as diferenciam das tribos indígenas nativas (Xingu e Amazônicas), porque apesar a influência do homem branco, isso é inconteste, o modo de viver é mais natural, é mais próximo as suas raízes ancestrais, do conceito indígena que ainda paira em nosso imaginário simbólico e social como um ser exótico, frágil e incapaz se comparado ao ser civilizado.
- "Apesar de toda a pretensa evolução que julgamos ter, ainda não aprendemos a lidar e a respeitar com os povos indígenas, seja ele urbano ou não. Ainda existe muito a ser feito, muito do que se redimir com a nossa primeira matriz cultural. É mais do que um gesto meu ou seu, mas, nosso. Cada um precisa encontrar em si mesmo, a indianidade que existe em si, mesmo que seja numa remota lembrança de infância ou escutando "Um índio" de Caetano ou "Índios" da Legião, em pleno momento de completo sentido e indignação ou tendo contato com os povos indígenas, até numa curiosa visitação."
"Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do Hemisfério Sul, na América
Tão claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros
Das fontes de água límpida
Mais avançado, que a mais avançada, das mais avançadas tecnologias
Virá impávido que nem Murra medi Dali
Virá que eu
Apaixonadamente, como Peri
Virá que eu
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu
Afoxé dos afoxés dos filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás, todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gestos, cheiro, sombra,
Em luz, em som
Num ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Objeto simples e resplandecente descerá um índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Eu não sei dizer assim de voz (...)
Virá impávido que nem Murra medi Dali
Virá que eu
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu
Afoxé dos afoxés dos filhos de Gandhi
Virá
Aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não como ser exótico
Mas, pelo fato, de poder, ter, ser e estar vivo"
(Caetano Veloso - Um índio)